Flavia Junqueira | Sao Paulo, 1985
Sobre a
artista
Doutora no curso de Pós Graduação do Instituo de Artes da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Mestre em Poéticas Visuais pela Universidade de São Paulo (USP) e Bacharel em Artes Plásticas pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP).
Textos
A imaginação pode nos fazer mergulhar em estados e dimensões que muitas vezes não conseguimos controlar e, mesmo diante de situações e imagens conhecidas, nos lançamos em viagens pelas memórias e sensações ativadas por essas condições. Essa pode ser uma cortina que se abre para nossos olhares, frequentemente adormecidos, ou anestesiados pelo cotidiano, mas que anseiam por lançar-se em revoadas pelos espaços da memória e da imaginação.
Nascem deste desejo por romper a rigidez em uma possível compreensão racional dos espaços, e a busca por questionar a hierarquia de nossas informações, as proposições de Flávia Junqueira nos convidando a novas miradas por lugares que julgamos conhecer e, por histórias que julgamos dominar. Voar, como sonhar, é preciso… e é possível quando somos impactados e deslocados de nossas certezas imediatas e não questionadas.
As pesquisas de Flávia Junqueira debruçam-se sobre o espaço teatral há mais de uma década, incluindo sua experiência inicial com cenografia e arquitetura teatral. A essa somou-se a formação em artes visuais, e o interesse pelo meio fotográfico que se tornou, de início, a linguagem com a qual produziu registros de conjuntos de objetos familiares, e do universo infantil, com séries como Na Companhia dos Objetos, de 2008, e A Casa em Festa, de 2009/2010, ou ainda Empilhamento, 2010.
Nestas séries explorava, pelo acúmulo de objetos/ brinquedos, as possibilidades de imagens do universo infantil, inserindo-os em ambientes de sua casa, criando um estranhamento nesse espaço da convivência familiar. Nesse cenário ela se insere literal e, corporalmente, performa para a câmera, em uma encenação dentro desse universo de aparente ingenuidade e de fragilidade, mas assumidamente pervertendo uma primeira leitura nessa direção.
Retomar esse percurso cronológico do início dessa linha de pesquisa, na produção da artista propõe, para além de biografar, revelar as origens da produção aqui apresentada, afirmando e articulando-a, ao longo dessa década, com as imagens aqui apresentadas.
A sequência das séries acima é produzida em deslocamentos geográficos e culturais para, respectivamente, Paris e Donestk. Na primeira cidade o encontro impactante com o peso da tradição, a memória de um passado presente a todo momento e lugar, em seus descolamentos pela cidade, se apresenta, frequentemente, como explicitação de finalizações identificáveis nas camadas de ruínas – destruição – que simultaneamente constroem essa paisagem aos olhos da artista.
É em Paris, com a série Ele ainda não está aqui, de 2011 que os balões já se apresentam como a materialização dos questionamentos sobre impermanência, perenidade, pelo caráter efêmero da matéria, ainda que ela se apresente na leveza e inocência, claro que apenas aparentes, desses globos coloridos. Inicia-se, na vivência parisiense, a prática de trabalho com esses elementos e a consolidação dessa reflexão permanente sobre o contraste acerca da leveza e da beleza, em contraposição ao efêmero e à noção de destruição e ruína.
Importante mencionar, ainda, que é daquele momento o início da prática coletar informações e referências visuais e, a partir do qual ela produz pela primeira vez a construção de um mapeamento exaustivo: o dos carrosséis que se espalham por Paris. Também desse procedimento decorre um olhar nostálgico em sua alusão ao universo colorido, fantasioso e mágico, infantil que nos remete ao tempo e a uma inocência perdida, que se busca resgatar.
Já o seguinte destino, nesse processo de deslocamento que Flávia Junqueira empreende esses referenciais parisienses se conectam com uma realidade verdadeira e assumidamente da ruína, imagem da destruição de sonhos revolucionários que a paisagem de restos soviéticos, em Donetsk apresentam, com força e vitalidade. O primeiro espaço de encenações – o Centro Cultural – surge como o campo de batalha do qual se erguerá essa peregrinação pela busca de afirmação da relevância de um trabalho que se debruce sobre a preservação de uma memória dos espaços teatrais, que se tornará fundamental na produção da artista.
Nesse raciocínio estabelecer uma prática de produzir uma condição teatral que insere um questionamento de noções de tempo e espaço, de lugar e pertencimento, passa constituir um dos focos de sua pesquisa que se tem ampliado nessas duplas dimensões, como assunto e tema, mas, principalmente, pela mescla de referências de memória (passado) e ações (presente) afirmando uma simultaneidade de tempos. Para tanto Flavia trabalha com referências cenográficas, de iluminação, e por que não dizer, de uma coreografia de cores e formas, com os balões, produzindo uma imagem que congela – em sua simultaneidade temporal – esse bailado orquestrado no espaço teatral: palco e plateia são, duplamente, o lugar da encenação o que nos coloca, como observadores e atores coadjuvantes desse jogo teatral no qual ela brinca conosco.
Essa ‘fotografia encenada’, como pode ser comumente identificada a linhagem na qual Flavia Junqueira tem desenvolvido sua produção pode ser entendida como uma prática artística que possibilita à artista adentrar espaços e situações detentores de uma história – por sua longevidade, ou inserção na cena cultural, ou ainda relevância arquitetônica… como espaços relevantes – e, de lá, oferecer sua visão, construindo o inusitado olhar proposto para aqueles que observam esses novos “retratos” dessa realidade espacial, agora subvertida pela presença dos pequenos e multicoloridos objetos que, em seu estranhamento ao serem para lá deslocados, nos remetem, ainda, aos ciclos da passagem do tempo.
O espaço teatral dominado pela presença dos inúmeros e festivos balões, que subjugam a inicial seriedade, habitualmente atribuída a esses ambientes se vê, também, pervertido por essa presença colorida, imponente, mágica e livre, com as mais distintas e possíveis alusões pessoais ao universo infantil, ainda que quase óbvio, mas que se amplia, também, ao de todas as formas de festividades e celebrações, marcadamente dos ‘cumple años’, a que nenhum olhar consegue ficar insensível e impassível.
Esses processos e olhares motivaram e, pode se dizer mesmo, provocaram e instigaram Flavia Junqueira a empreender uma dupla jornada em busca dos teatros históricos no Brasil, mapeando e produzindo suas encenações perturbadoras da ordem estabelecida pela visão comum desses sisudos ambientes e históricos edifícios que testemunharam um século e meio dessa arquitetura teatral, espalhada pela vastidão continental do país, da floresta amazônica aos atuais centros econômicos e políticos brasileiros.
Nessa perspectiva em uma década de buscas e de debruçar-se sobre esses espaços teatrais, nos quais intervém, simultaneamente à produção do mapeamento, a artista consolidou sua relação com as investigações motivadoras de proposições das encenações que realiza em cada uma das distintas condições desses ambientes culturais.
O convite para a realização da primeira empreitada europeia da série Revoada – identificação dos trabalhos realizados com os teatros – realizada no Grand Teatre del Liceu reveste-se, portanto, de importância e de muitas perspectivas desafiadoras para Flavia que, ao atravessar o Atlântico com seu ‘mapeamento’ iniciaria uma nova viagem, e de direção inversa na busca por esses espaços teatrais que inspiraram e motivaram aqueles que, no Brasil, foram objeto de sua pesquisa.
Dados como o isolamento social decorrentes da pandemia, as comemorações dos cento e setenta e cinco anos do “Liceu”, o início de um debruçar-se sobre a espacialidade referencial dos teatros europeus, entre outros, constituem-se em diferencial para essa nova etapa das Revoadas, e da pesquisa da artista, incitando, ainda a que novas possibilidades se abram para o trabalho.
A proposta, nesse sentido, ampliou-se de uma simbólica dimensão, ganhando força para “saltar no vazio” e, lançando-se em “mares nunca dantes navegados”, propor que a encenação/ ocupação/ intervenção ganhasse novo impulso, e desafiasse outras possíveis percepções para o trabalho. A imponência relevância e significado dessa realização, pela ocasião de iniciar o programa “Salto al vacio”, colocou-se como uma provoacação para trilhar novos caminhos, experimentar – e compartilhar – novas percepções e sensações, razões mais do que suficientes para dar passos em outras direções e, provocar, tanto quanto provocar-se, a caminhar, fazendo novos caminhos.
Como uma ruptura em suas práticas artísticas – tendo como base a encenação fotográfica – Flávia propõe aqui um chamamento à participação, acrescentando novas dimensões às esperadas fotografias, como eram até então produzidas. Encenar a situação de suspensão em que se encontram os balões, nesse espaço do Liceu, que é um lugar com história, e no qual a história também se faz nos contares de histórias, pareceu poder ficar reduzido diante da perspectiva de propor uma camada a mais de experiências sensíveis.
Pela primeira vez a proposta ampliou-se com o convite para que da “fotografia encenada” pudesse ser realizada uma intervenção no espaço e que essa pudesse ser vivenciada por uma parcela de público que lançaria olhares, mas penetraria com seus corpos essa revoada de cores e formas.
O espaço do Liceu ganhou por alguns dias, já que da preparação encenada para as fotos ampliou-se temporalmente a permanência e, numericamente, a presença dos balões para que pudessem receber e abraçar esses novos interlocutores: o “respeitável público” que, por alguns momentos teve a experiência de mergulhando na revoada de “objetos familiares”, e caminhando por entre o emaranhado de fios coloridos, atravessar a barreira da imagem para estar instalado na “companhia dos objetos”.
O maravilhamento da experiência de adentrar em um espaço onírico, instaura uma nova condição para o espaço, mas também para esses distintos públicos, incluindo-se aqui os funcionários do Liceu que atuaram, ou não, diretamente na produção e realização da ação, mas que como o público externo, desvelava o espaço, tratado de forma inusitada, com outros olhares.
Oswald de Andrade, um dos mais importantes intelectuais e criadores brasileiros, do século XX, propositor da ideia de antropofagia na cultura brasileira, insistia na necessidade de “rever tudo” e, dessa maneira, abrir-se para as experiências, deglutindo e repropondo visões do mundo.
Podemos nos apropriar de sua proposição, que há cem anos nos provoca e ver como Flavia Junqueira nos leva a experimentar e a nos lançarmos nesse desafio: sonhar, como forma de voar para novas perspectivas, nos lançarmos em permanentes desafios, buscar formas para superar o peso do recente passado. O sonho, o desejo e a paixão materializam-se como proposição de enfrentar os “inimigos invencíveis”, que nos assolam no dia a dia, mas que a arte nos alimenta a vencer.
Freud indaga se não devemos procurar na infância os primeiros traços da capacidade de imaginar. Em “Escritores criativos e devaneios”, o fundador da psicanálise aproxima a brincadeira à capacidade de invenção observada nos artistas e escritores. O trabalho de Flávia Junqueira possui essa dimensão poética própria da fantasia de origem infantil. Na sua obra, o aspecto mágico coloca em cena a possibilidade de ficcionalização da realidade que abre caminho, na imagem, para uma ligação com a potência imaginativa primeira.
Os balões, carroséis, brinquedos e parques de diversão retratados pela artista condensam a irradiação da cor – sempre trabalhada de forma primorosa – e a impressão fina do ritmo das imagens que habitam o sonho, a fantasia, o chamamento à poesia. Redemoinhos de significados pulsionais se abrem na matéria viva que se carrega na memória.
Revisitar as raízes da infância é uma forma de articular e integrar diferentes modalidades sensoriais. A riqueza do mundo sensível da criança – essa espécie de “originário incessante” – é fonte de criação e de descoberta, como descreve Johan Huizinga, historiador holandês que, no livro “Homo Ludens”, de 1938, destaca a importância da brincadeira na cultura e afirma que “é no jogo e pelo jogo que a civilização surge e se desenvolve”. Charles Baudelaire, no magistral ensaio sobre a “Moral do brinquedo” localizava, no convívio da criança com os brinquedos, também os primeiros sinais de uma predestinação literária ou artística. Na aparente simplicidade das crianças há muita capacidade de improvisação que pode captar o que nos escapa por desatenção.
Espaços reais e oníricos – como o Real Gabinete Português de Leitura ou um parque de diversões – abrigam imagens inventadas que transitam pela dimensão do infantil, sonho e fantasia. Prenhes da “memória das coisas”, criam um universo – flexível, móvel, desdobrável – em uma delicada zona de interseção, uma potente experiência em que se aglutinam o jogo, o lúdico e a brincadeira. Nisso seu trabalho se aproxima de propostas artísticas que marcaram o século XX – de Van Gogh a Renoir, das garatujas de Cy Twombly às fotografias de imagens de museus com crianças, que mostram a dimensão da fresta. De um olhar movediço e que não se deixa capturar por obviedades – como nas belíssimas obras de Sabine Weiss ou Herb Slodounik – a temática da infância aparece não como estado fixo, mas como corpo mutante que leva a uma interrogação constante sobre o visível e o invisível. E essa é a zona para onde arte e infância convergem e que a artista faz cintilar, ao acessar regiões em que os sentidos encontram-se em estado de porosidade e ainda não estão prontos.
No livro “Infância e História”, Giorgio Agamben pensa a infância não apenas como idade cronológica ou fisiologicamente definida e fechada, mas como uma forma de sensibilidade que atravessa a existência. A obra de Flávia Junqueira também abarca essa dimensão do humor e o flerte com o indomesticável e a beleza que flutua entre as imagens. O balão – possibilidade da vertigem e do sonho – e os brinquedos transformam e refundam o jogo de presença-ausência de maneira mágica e colocam a infância como ponto fulcral de sua obra, ao tocar o inefável e a experiência do mistério.
Walter Benjamin, no ensaio “Brinquedo e Brincadeira”, observa o interesse espontâneo que as crianças têm pelos resíduos dos trabalhos manuais dos adultos, como a costura e a marcenaria. A psicanálise desnaturalizou os discursos sobre a linguagem e a infância e, com a arte, podemos perceber “como uma sociedade sonha sua infância”. É neste ponto que o trabalho de Flávia Junqueira incide pois, em última instância, é sempre do infantil que se trata: o que da experiência infantil persiste como marca no sujeito, ou seja, o que permanece como matriz pelo resto da vida.
Como no infinito da poesia de Louise Gluck, “olhamos para o mundo uma vez, quando crianças. O resto é memória”. A arte permite que o mistério dos primeiros tempos nunca se dissipe e Flávia Junqueira atualiza a ideia subversiva da brincadeira como dom e dádiva.
De uma hora para outra, a festa esfriou. Os balões murcharam, a música cessou e o pipoqueiro foi embora. Ficaram apenas os monstros da infância, mas até eles já não conseguem assustar. Estão caducos. Envelheceram porque nós também envelhecemos. Ainda que esses monstros estejam debilitados, eles insistem em permanecer de alguma maneira, o que faz com que Flavia Junqueira aborde lugares, personagens e temores progressos outra vez. Agora, no entanto, a perspectiva é de uma adulta que se acostumou a viver ao lado dessas assombrações e que já não se espanta tanto quanto antes.
Para isso, deixa de lado a composição caótica de trabalhos anteriores, recolhe os objetos que a acompanhavam e agora os exibe isolados, desmembrados da pilha de bexigas e brinquedos. Em uma loja, fotografa cabeças de fantasias de desenhos animados. Sorridentes, com a alegria estática que lhes é característica, estão silenciosos aguardando por uma festa que pode não acontecer. O quarto está cheio de brinquedos, mas ninguém está brincando ali.
Da mesma forma, bandeirolas, como aquelas de aniversários infantis, dispostas na entrada da exposição, carregam as frases: “Não consigo respirar direito aqui. Posso sair?”. Aquilo que parece gracioso à primeira vista aponta para algo desalentador em seguida. O registro da escultura que emula a carruagem-abóbora da Cinderela mostra um veículo cujas rodas nunca tocam o chão.
Em outras obras, nem é preciso interferir nas referências do passado. Ao documentar a ótica e o consultório dentário que frequentava quando pequena, Flavia escancara espaços funcionais, dirigidos a adultos, mas que se travestem de buffet infantil para amenizar o medo pueril. Hoje, ao olhar locais que a assustavam antes, sobra o sarcasmo da decoração histérica.
Sarcasmo que reaparece em imagens de um velório, capturadas na internet, no qual os familiares, vestidos como personagens infantis, carregam o caixão de uma criança. Os monstros já não assustam tanto, são até satirizados. Assim como o Mickey que tenta causar algum espanto à artista, mas a encontra paralisada, com a expressão de choque que beira o desdém. Há seis anos, Flavia inaugurou esta galeria com uma exposição que fingia ser uma festa. Agora, o cachorro quente, a serpentina e o pirulito dão lugar a uma mostra que deságua em uma lápide com a inscrição: “Pense como uma festa que um dia foi festa, mas que talvez tenha sido interrompida abruptamente e cujo espaço tenha ficado desabitado e esquecido”.
Em seus primeiros trabalhos, Flávia Junqueira cria cenários preenchidos pelo excesso de objetos. Apresenta espaços interiores da casa por meio de memórias ritualizadas por lentes de aumento. As séries Na Companhia dos Objetos (2008) e A Casa em Festa (2009/2010) busca questionar a ironia da candura infantil através de atos performáticos da própria artista.
Em 2011, ano de produção das séries apresentadas nesta exposição, Flávia Junqueira desloca-se para espaços externos ao ambiente afetivo da casa; percorre um caminho por prédios antigos e/ou decadentes. Passeia por São Paulo para compor a série Sonhar com uma Casa na Casa. Com uma bagagem contendo elementos coloridos, a artista segue para Paris, onde desenvolve AnteSala e Balões. Por fim, chega à Ucrânia. Gorlovka, 1951 são fotografias realizadas em um decadente Palácio da Cultura da era soviética abandonado na cidade de Donestsk.
Ao visitar estes locais sombrios, a artista sobrepõe elementos inventados. Esses lugares aparentemente solitários e vazios, são revistos através de cores vibrantes. Ao mesmo tempo em que os objetos se instauram como detalhes, chamam a atenção pelo contraste em relação ao espaço. A princípio, não se espera encontrá-los nesses ambientes. É uma tentativa de ressaltar que as lembranças estão lá, sejam elas oriundas de vivências ou do imaginário. Entre um tempo que passa rápido (a infância) e outro que não passa (associado à imponência dos edifícios), a memória é ficcionalizada. Sabe-se que a fotografia concentra ao longo da história a discussão dicotômica entre espelho do real e transformação da realidade. Flávia Junqueira dissolve essas fronteiras – real e ficção estão juntos na mesma imagem – e sobrepõe os diversos significados com que estes conceitos já foram definidos.
Aquecida, guardada, mimetizada nos trabalhos da série na companhia dos objetos de Flávia Junqueira, uma menina/mulher parece ter sido esquecida em profunda simbiose com os objetos de uma casa, muitos deles. Misturar-se tanto com o entorno e em silêncio ate ser confundida é o esconderijo perfeito. A invisibilidade é um recuso que tensiona, o invisível não encara o outro, mas aproveita-se de sua pouca atenção para estar com ele, vigiá-lo.
Um eu que se anula é o esconderijo perfeito, ser ignorado é uma espécie de chave, que pode abrir portas, e através delas, acessar fábulas. Uma criança silenciosa, a despeito das teias restritivas que adultos articulam para constituir a realidade, sentem e intensificam cores para servirem mais adequadamente as afetações que sentem, abusando das propriedades plásticas do pensamento. Na serie “A Casa em Festa”, fotos de grandes dimensões criam a ilusão de que olhamos, novamente e de um ponto privilegiado, a menina/mulher com seus objetos, brinquedos e um ou outro personagem estranho. Há um convite implícito observável nas imagens, há um “brinca comigo?”. Indícios de uma festa que acabou e tornou os objetos tão inúteis que sua presença cresce, uma bola guarda em si todos os jogos em que foi usada? Parece que os objetos de Flavia são assim dimensionados, exagerando seu não uso, como se o apego ciumento pela boneca fosse indício de quem quer o mundo todo pra si.
Não pensamos na parafernália de equipamentos presentes no momento no qual a foto foi feita e invisíveis nela, somos seduzidos e colocados para assistir ao fim da festa podendo contar apenas com nossa inaptidão para o transitório. O que vemos nos trabalhos de Flávia Junqueira, da serie “Um outro Mapa para Paris” a partir de fotos e da localização dos carrosséis existentes na cidade ou a série de fotos realizadas na Ucrânia (Gorlovka), durante a realização de uma residência artística para a qual a artista foi selecionada, qualificam estados mentais despertos pelos objetos guardados, e de como somos afetados pela sua existência há um só tempo intensa e precária e, o mais fascinante, estes objetos nos olham tanto quanto olhamos para eles.
Assombrar-se diante do absurdo, abrandar-se na presença da graça. Talvez se possa descrever assim a experiência forte de ver Flávia Junqueira em ato, compondo com excêntrico rigor suas imagens insólitas. Perdido na profusão de cores, com o olhar ofuscado pela explosão de brilhos, o espectador se deixa provocar pelo despropósito. A artista não se abala, não se perde jamais: poeta austera a deslocar palavras em seus versos, move balões sem nunca se cansar. Batalha centímetro a centímetro o lugar exato de cada objeto, o ponto preciso do espaço que ninguém mais descobrirá. A esta altura o espectador pode até rir, tomado pelo disparate, já se perguntando se a arte não estará no movimento incessante, se aquilo que vê não será uma performance. E é nesse preciso instante que uma graça se faz outra graça, e uma arte se faz outra arte.
É quando o obturador se fecha, e quando a foto é revelada, que se desvela o sentido de tantos incansáveis esforços. Estamos subitamente deslocados ao espaço movediço de outras artes, ao museu, ao monumento, aos velhos teatros. Estamos imersos no longínquo cenário de uma cultura nacional, sentindo o peso da história, ouvindo o silêncio do passado. Nenhum espetáculo parece iminente agora, nenhum ator pisará no palco, o público ausente não terá a quem oferecer o seu aplauso. E, no entanto, lá estão os incontornáveis balões, a transtornar o espaço, a nos comover com sua presença enigmática. A leveza a contrariar o peso, a cor a cobrir o silêncio, a delicadeza a se opor à gravidade. Os balões são os artistas a tomar o palco, tenha o teatro a forma que tiver, seja ele a rua, seja ele o céu. Ou será o contrário? Os balões são os espectadores na plateia, a nos devolver a nossa imagem, nós os artistas no palco, paralisados.
Nada dura mais que um instante, logo recobramos o movimento dos nossos corpos, logo estamos de volta ao nosso lugar. Nada está ali para durar: basta um breve afastamento e percebemos estar diante da evanescência, da efemeridade. No tempo de um suspiro, ou pouco mais, os balões estarão murchos, cobrirão o chão já sem nenhum brilho, suas cores agora quase mortas, a festa quase acabada.
Mas antes de irmos embora, uma última presença inesperada. Flávia no centro do palco, a contemplar os balões como quem contempla outro passado, menina a vasculhar no tempo a sua própria infância. Eis a sua fantasia reiterada: o anseio de repetição e retorno que habita toda criança, restauração momentânea do que mais deseja, a leveza, a cor, a rua, o céu. Eis o que a artista nos devolve, ainda que por um átimo, indevassável: a nossa infância, em tudo o que tem de absurdo, em tudo o que tem de graça.
Contato
Flávia Junqueira é representada no Brasil pela Galeria Zipper,
Nova Iorque pela Unix Gallery e na Europa pela Galeria Reiners Contemporary Art.